Para escrever este artigo pensei muito. Pensei tanto que
imaginei estar sendo inconveniente defendendo de forma tão veemente como nos
últimos anos a ordem econômica cravada nos artigos da Constituição Federal.
Diga-se de início que trato nesta ocasião da Resolução 25 do
COAF (Conselho de Controle de Atividades Financeiras) órgão que integra o
Ministério da Fazenda.
Primeiro devemos nos situar – ainda que de forma singela–que
o COAF tem por vocação a criação e gestão de mecanismos que funcionem como
ferramenta de controle para evitar os crimes de lavagem de dinheiro e
terrorismo – seja lá o que signifique este termo em nosso ordenamento –
previstos na Lei 9.613 de 1998, com as alterações previstas na lei 12.683 de
2012.
Vale desde início ressaltar que as inovações trazidas pela
Lei 12.683 de 2012 foram substanciais no sentido da ampliação das
possibilidades e ferramentas a disposição do Estado para impedir a lavagem ou
ocultação de bens e valores, sendo o COAF protagonista em todo este processo.
E foi no contexto do controle de atividades financeiras que
sempre funcionou o COAF, contudo tal atividade foi deveras estendida em 2012
pela nova legislação de regulação da matéria, sendo incluídas diversas
atividades econômicas, dentre elas “pessoas jurídicas que comercializem bens de
luxo ou de alto valor”, “empresas de consultoria e auditoria”, “compra e venda
de imóveis”, “alienação de direitos em atividades esportivas” etc, como
possíveis “pessoas” obrigadas a prestar informações econômico-financeiras
diretamente ao COAF.
Cogitou-se até que nós os advogados devêssemos informar via
COAF eventual “operação suspeita”, um absurdo que só foi corrigido por meio da
intervenção judicial iniciada pela Ordem dos Advogados do Brasil. Pretendiam
acabar com um dos maiores deveres do advogado para com seu cliente: o sigilo
profissional.
A Resolução 25 do COAF procurou conceituar o que é o mercado
de luxo, o de plano já nos parece equivocado, pois, definir e/ou conceituar
institutos não é função de Resolução, em todo caso narra: “Para os fins desta
Resolução, entende-se como de luxo ou alto valor o bem móvel cujo valor
unitário seja igual ou superior a R$10.000,00 (dez mil reais) ou equivalente em
outra moeda.”
Confesso que alguns se sentiram ofendidos, pois certamente
tinham outro conceito de luxo, mas, nos apegaremos somente aos aspectos legais
e não daremos uma extensão semântica ao aludido dispositivo, mesmo porque, o
luxo é sempre passageiro, sofre com a corrosão do tempo, mazela não atingida
pelo conhecimento, este sim o material humano disponível na terra, entretanto,
o mercado que vive do luxo, este deve ser preservado como atividade econômica.
Assim, estão obrigados aqueles que promovam negócios acima
de R$10.000,00 e que constem na relação de atividades descritas na lei que
mantenham arquivo com cadastro, informações e uma série de absurdas
burocracias, durante anos para que um dia, talvez, o COAF as exija para avaliar
a fonte de recursos ou possibilidade financeira daqueles que compram as
mercadorias.
O absurdo não para por aí. Exige-se que as empresas criem um
cadastro e caso seu cliente adquira no período de seis meses, produtos ou
serviços em valor superior a R$30.000,00 será obrigatória a informação ao COAF
por meio de acesso eletrônico.
Neste momento do texto é necessário respirar um pouco para
não passar para as páginas o inconformismo de quem se dedica ao estudo de
fenômenos jurídicos e se depara com um disparate técnico de tal natureza.
O que está a fazer o administrador público que edita tal
assombração que responde pela alcunha de resolução? Respondo: Está claramente a
interferir na forma de gerenciamento de carteira dos clientes.
Obrigar um contribuinte, jurisdicionado, ou, seja lá que
nome se queira dar ao cidadão, a manter um cadastro com determinação de tempo,
valor, periodicidade é interferir claramente em atos de gestão, que são
privados e protegidos pela Constituição Federal na medida em que compõe
evidentemente aspectos da livre iniciativa princípio erigido como fundamento da
República nos termos do artigo 1º, inciso IV da Carta Maior.
O que se vislumbra é que o órgão destinado ao controle de
volumes e trânsito de recursos financeiro advindos de atividades “duvidosas”
vem ganhando contornos de intervenção direta na atividade econômica, chegando
mesmo a criar regras que exorbitam os critérios previstos na chamada Lei de
Lavagem de Dinheiro. Se alguém tem alguma dúvida basta ler a missão do COAF
narrada em seu site: “Prevenir a utilização dos setores econômicos para a
lavagem de dinheiro e financiamento do terrorismo, promovendo a cooperação e o
intercâmbio de informação entre os Setores Público e Privado”.
É evidente que não há sequer menção à intervenção na
atividade privada; devendo ser suas medidas setoriais, de mercado, como narra a
missão e a própria lei que o criou, e o texto e contexto comprovam que foi abandonada
tal premissa em nome da nomeação do empresariado como fiscal, em uma
sub-rogação inaceitável.
Volto a dizer que livre iniciativa não é somente o direito
de empreender. É, além disso, o direito de decidir como empreender. Como
administrar e gerir clientela e ramo de atividade.
Embora no Julgamento da Ação Penal 470 pelo Supremo Tribunal
Federal, no chamado “Mensalão” tenhamsido discutidos e mesmo alteradosconceitos
importantes sobre a forma de interpretação da chamada Lei de
Lavagem de Dinheiro, tais como a “teoria do domínio
funcional” ou a “teoria da cegueira deliberada” não se pode crer que a
interpretação tenha chegado ao ponto de fazer dos empresários verdadeiros
fiscais da origem de recursos de seus clientes.
É importante ressaltar que a intervenção na iniciativa
privada fica evidente ao fazermos o seguinte cotejo: Ao consumidor é
resguardado o direito de total transparência e informação em suas compras,
direito resguardado pelo Código de Defesa do Consumidor. Ao consumidor é ainda
resguardado o direito de não ser inscrito em nenhum tipo de cadastro público ou
privado,ou ainda ficha com seus dados pessoais, sem que o tenha solicitado ou
autorizado, como narra o artigo 43 §2º do referido Diploma Legal.
Logo, estaria o empresário, comerciante, obrigado a informar
ao cliente – por conta da obrigação de transparência – de que faria uma
informação ao COAF, e assim, abrindo séria possibilidade de por puro receio
deste frente a conhecida voracidade do poder público perder a venda. E o
cliente(consumidor) por sua vez não teria como recusar-se a participar da
criação de tal banco de dados (em relação ao volume de vendas no semestre). Um
verdadeiro absurdo.
Pois bem, para que não sejamos acusados de não fazer uma
interpretação “sistemática” vale dizer que a Lei 9.613 de 1998, com a nova
redação dada pela lei 12.683 de 2012, prevê em seu artigo 11, II, que seja
prestada a informação ao COAF no prazo de 24 horas e que “deverão comunicar ao
COAF, abstendo-se de dar ciência de tal ato a qualquer pessoa, inclusive àquela
a que se refira a informação”.
A qual determinação deve o empresário respeitar? A
integridade na sua relação com sua clientela ou a problema de investigação de
recursos que cabe exclusivamente ao poder público?
O conflito de normas é evidente, e a explicação singela:
sempre que o poder público se põe a tentar adentrar nos valores da livre
iniciativa e na atividade privada – situação que já é por demais regulada –
ocorre um choque entre enunciados normativos, na maioria das vezes insolúvel.
Não se está a defender no mercado financeiro a facilitação
na ocultação de recursos. O que se está a pontuar é que a lavagem de dinheiro é
sempre antecedida por outro crime gerador de recursos ilícitos. É a corrupção
na maioria das vezes que alimenta este tipo de delito e não a conduta de quem
vende produtos ditos como de luxo.
A diminuição da incidência do chamado “branqueamento de
recursos” passa por regras punitivas dos envolvidos. E como dito – é tema que
vale insistir – a corrupção pública e privada é que abastece este mercado
criminoso, mas, como sempre no Brasil para tratar o carrapato é mais fácil
matar a vaca.
Não há dúvida que as empresas buscarão sua proteção batendo
às portas do Poder Judiciário. E mais uma vez caberá reprimenda de manifestos
abusos do poder público e ainda há quem critique a atuação dos Tribunais a se
manifestar sobre todo enunciado normativo.
A acidez no discurso que é incomum a este pobre mortal é
passível de explicação na frase de dois incríveis Professores que comentam
aspectos da obra do Jusfilósofo Norberto Bobbio; diz: “O pensamento de Bobbio
rema contra a maré do que vem acontecendo neste aterrorizante início do século
XXI, permeado por governos visíveis e poderes invisíveis que manipulam as
instituições democráticas”.ⁱ
A todos é reservado um dia experimentar o sentimento humano
do brilhante Bobbio, hoje talvez tenha sido minha chance.
Referência:
ⁱAlberto
Filippi, Celso Lafer; A presença de Bobbio: América Espanhola, Brasil,
Península Ibérica,2004, pág.12
***Artigo escrito por Aílton Soares De Oliveira, advogado
e sócio do GDO Advogados e especialista em direito Tributário pela PUC de São
Paulo.
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